sábado, 20 de julho de 2013

Los Tres Caballeros

Já faz algum tempo, programei a publicação desta minha história no blog, o que decidi fazer hoje.

Originalmente publicada no meu primeiro livro, “O Histórias do Terceiro Tempo”, é a história de três colegas de uma empresa multinacional que, vivendo cada um em seu país, encontraram-se e fizeram uma amizade tão improvável quanto duradoura.

Duas coincidências me fizeram tomar a decisão de publicá-la aqui, hoje. A primeira foi o desejo de meu neto carioca, o Bruno, mencionado no texto, de, ontem, rever o filme, depois de muito tempo sem vê-lo. A segunda foi meu sobrinho mais velho, com quem eu não falava há mais de um ano, comentar em telefonema de hoje que a história foi muito apreciada por seu irmão.

Portanto, do “Histórias do Terceiro Tempo”, transcrevo abaixo “Los Tres Caballeros”. Apesar do título, o idioma é o Português.



LOS TRES CABALLEROS

Quando observo o Bruno, meu neto de quatro anos neste ano de 2007, assistindo, todo animado, à fita de vídeo do filme “Você já foi à Bahia?”, fico cismando sobre as coisas estranhas da vida.

Ele tinha apenas dois anos quando lhe mostrei o filme pela primeira vez, para me livrar da repetição cansativa do desenho animado das histórias de uma vaquinha que era o DVD que ele tinha aqui em casa. Como ele já gostava muito de música e de dançar acompanhando os filmes e CDs, resolvi arriscar e ver se ele gostava.

O filme, um desenho animado musical de Walt Disney, foi feito na ocasião da segunda guerra mundial, com o objetivo de aproximação simpática dos Estados Unidos com a América Latina; tem, como temas principais, as visitas do Pato Donald à Bahia (daí o nome em Português) e ao México. Na primeira, o anfitrião foi o papagaio Zé Carioca e, na segunda, o galo Panchito (mexicano), mas também com a companhia do Zé. Daí o nome original do filme – Los Tres Caballeros.

Pois o Bruno gostou e continua pedindo para assistir ao filme quando vem visitar os avós. De início ele se interessava pela música e danças, sua preferida era a da Adelita, heroína revolucionária do folclore mexicano; mas, depois, passou a se divertir também com as estripulias dos três personagens, especialmente do Donald.

Mas por que eu disse que fico cismando sobre as coisas estranhas da vida? Por que eu tenho essa fita em casa?

Agora começa minha história – a história de três caras que a vida fez encontrarem-se e tornarem-se amigos.


Em 1967 eu trabalhava na IBM, em São Paulo, já fazia sete anos. Era então Gerente do “Centro Educacional”, setor responsável pelo treinamento em Informática que a Empresa dava ao pessoal de seus clientes (o Gerente de Informática de um deles, de gozação, me chamava de “Magnífico Reitor”). Além dos cursos aos clientes eu coordenava também o treinamento técnico do próprio pessoal IBM, profissionais e gerentes. Naquele ano, a IBM decidiu dar um curso puxado, no mundo inteiro, aos seus gerentes da área de vendas, para desenvolver o uso de teleprocessamento pelos clientes, ou seja, o uso de terminais ligados ao computador central de cada Empresa, o que era um passo difícil em matéria de tecnologia. Especialmente treinado nos Estados Unidos para esse trabalho, um grupo de gerentes técnicos foi incumbido de dar o curso em todos os países em que a IBM operava. Para o Brasil, vieram o Jorge Martinez, do México, e o Fernando Villanueva, do Chile. Como eu era o coordenador, acabei fazendo também o papel de anfitrião em São Paulo, até no fim de semana, pois o curso durou quinze dias. Fiz as honras da casa, proporcionando-lhes um tour no fim de semana e acabei até levando-os à casa de meu sogro no bairro do Pacaembu, de modo que eles conheceram minha família. Meu domínio do Espanhol facilitou a comunicação e fizemos boa camaradagem.

Naquela ocasião, eu andava um tanto inquieto com relação ao meu trabalho na IBM, pois já tinha desenvolvido bastante o treinamento a clientes em São Paulo e estava procurando novos desafios. Entretanto, treinamento e visitas à IBM nos Estados Unidos eram uma oportunidade rara, mesmo para gerentes; precisava haver uma razão específica para os diretores aprovarem uma viagem dessas. Até 67, além de treinamento e reuniões no Brasil, eu tinha apenas participado de uma convenção em Caracas e feito dois cursos internacionais em Buenos Aires. Com quase cinco anos na gerência do Centro Educacional e com a responsabilidade adicional de coordenação de cursos a executivos de clientes em São Paulo, eu vinha havia algum tempo pleiteando uma visita à matriz americana para observar e discutir as novas diretrizes, organização, métodos e recursos que poderíamos vir a aplicar na IBM do Brasil. Não estava fácil, pois a prioridade era para os programas de venda – por exemplo, a preparação do representante IBM junto à Petrobrás.

“Eis senão quando”, surgiu a necessidade de enviar um profissional do Brasil ao México para um curso sobre um software aplicativo de controle de estoques, sofisticado, que poderia trazer novos negócios à IBM – o IMPACT (Inventory Management Program for Accounting and Control – os americanos gostam muito de acrônimos). Fui convidado para assistir ao curso em Cuernavaca, cidade próxima à Capital, onde a IBM tinha um centro de treinamento para executivos. Aceitei, mas vendi a ideia de estender a viagem para a Cidade do México para visitar o Departamento de Educação da IBM do México, do qual o Jorge Martinez era gerente, e para Nova York, para fazer a visita ao Departamento de Educação da matriz internacional, a IBM World Trade Co., visita esta que eu vinha propondo havia tempo. O acréscimo de despesas não era muito, pois a viagem ao México era via Miami.

Assim foi que, em outubro de 1967, fiz o curso em Cuernavaca, visitei a IBM do México e, no fim de semana, conheci a Cidade do México, que estava em grandes preparativos para as Olimpíadas de 1968.

O Jorge foi muito hospitaleiro. Um pouco mais alto e mais forte do que eu, com jeitão de árabe rico, sempre muito bem vestido, me levou para jantar em restaurantes muito bons (um deles, o do Lago, em Chapultepec). Designou pessoas de seu grupo para me atender no trabalho, pois enfrentou um problema muito sério naquela semana: um dos seus instrutores morreu em Caracas, onde estava em viagem a serviço.

Ao me despedir, contei ao  Jorge que ia a Nova York. Ele resolveu, então, ligar para um grande amigo seu da IBM de lá e sugerir que nos encontrássemos. Fez o telefonema e ficou acertado que eu ligaria para o seu amigo quando chegasse. Deu-me o número do telefone do Bill Ouweneel e insistiu para que eu o chamasse, pois, disse, ele era ótima pessoa.

Foi, portanto, minha primeira vez em Nova York.

Não tive problemas, pois aproveitei as dicas dos colegas que haviam estado lá antes. Hospedei-me num hotel na Lexington Avenue, antigo mas razoavelmente confortável. Encontrei dois colegas do Brasil e fizemos alguns programas juntos, inclusive o passeio de barco em torno da ilha de Manhattan (Circle Line). Cumpri minha agenda de trabalho na IBM, em Nova York e Poughkeepsie, atendido por um colega simpático, o Brad Foss, que depois eu iria encontrar em Chicago, quando trabalhei lá.

Eu havia chegado a Nova York num fim de semana. Na segunda à noite, sem muito palpite, liguei para o Ouweneel. Esperava um atendimento cordial, talvez a marcação de um encontro na hora do almoço, pois a informação que eu tinha era de que os americanos não eram de “fazer sala” para colegas de fora. Em geral, moravam no subúrbio e tinham de tomar o trem para casa às seis da tarde. Mas o Bill me surpreendeu – me convidou para jantar no dia seguinte, no apartamento dele. Casado, sem filhos, era dos poucos que moravam em Manhatan, nem tinha automóvel (quando precisava, alugava). Se não me falha a memória, levei umas flores para a Joan, mulher dele, que também trabalhava na IBM, na Divisão de Máquinas de Escrever. Ambos claros e altos, ela loira, cabelo cortado curto, ele, descendente de holandeses, branquíssimo, com um rosto jovem e uma calva precoce, rapava a cabeça à maneira do Yul Brinner. Muito simpáticos e atenciosos, os dois. Foi um jantar muito fino e muito agradável; falamos, claro, do Brasil e eles me mostraram um belo livro, ilustrado, com coisas nossas, em que Pelé figurava com destaque.

Como eu iria voltar ao Brasil no sábado à noite, me levaram para visitar o Museu de Arte Moderna – o MoMA – e apreciar, principalmente, Guernica e obras de escultura de Picasso. Almoçamos no museu e eles ainda me acompanharam à Schwartz, loja famosa de brinquedos onde comprei presentes para as crianças. Naquela semana fiz dois grandes amigos, mas não podia adivinhar como nossa amizade iria ser tão duradoura e com acontecimentos tão imprevisíveis.

Programa concluído em Nova York, voltei a São Paulo com informações importantes para meu trabalho aqui no Brasil, com as histórias da viagem e com presentes para a família, como era de praxe.

Durante 1967, mantive contato com o Jorge e o Bill por correio interno IBM (o e-mail surgiria muitíssimo mais tarde) e por cartões de Natal, até que, no início de 1968, fui designado para um trabalho em Chicago, num projeto especial da IBM, que durou cerca de dois anos. Era a preparação de lançamento de um computador compacto, o menor e mais barato jamais produzido pela IBM, e que iniciaria, de certa forma, a introdução dos sistemas eletrônicos nas pequenas e médias empresas. Muito antes dos PC´s, lançados na década de 1980, o Sistema/3 viria a ser um dos maiores sucessos de venda da IBM no mundo todo. Entretanto, àquela altura, por causa da lei antitruste americana, o projeto era ultra confidencial, uma das razões dos participantes do projeto, um grupo internacional, ficarem instalados em Chicago, em um edifício não IBM.

Mudei-me para Chicago em maio de 1968, com a família: Leilah e três filhos (Luiz, sete anos; Cássio, cinco; e Francisco, dois e meio). Jurema ainda não havia nascido.

Comuniquei a mudança aos dois amigos, usávamos o telefone, e tínhamos a expectativa de reencontrar-nos. Bill e Joan foram nos visitar nos feriados de Thanksgiving, em novembro de 1968, após visitarem os pais dele em Indiana. Foi muito simpática e agradável a visita deles; nessa ocasião, a Leilah os conheceu e a amizade se estendeu e se consolidou.

Visitamos o Jorge em nossa viagem de volta dos Estados Unidos ao Brasil, em 1969, quando fizemos a proeza - o casal (a Leilah grávida) e os filhos - de fazer o trajeto, com uma enorme bagagem, pela costa oeste dos Estados Unidos para conhecer São Francisco, Los Angeles, Disneyland (ainda não existia a Disneyworld); depois, fizemos escala no México, para a Leilah poder apreciar a arquitetura, os museus, as pirâmides, o balé, enfim, tudo de bonito e diferente que aquele país oferecia e oferece ao visitante. O Jorge, como de hábito, nos recebeu muito bem, foi um cicerone atencioso, fazendo questão de nos levar, com sua mãe, a Puebla, sua cidade natal. Um bonito passeio.

Voltamos ao Brasil, Jurema nasceu depois de quinze dias e fui transferido para a IBM Matriz no Rio, promovido para uma gerência de produto, cujo principal objetivo era o marketing do Sistema/3.

Antes de nossa volta, mas depois da visita do Bill e da Joan a Chicago, recebi um telefonema do Bill com uma notícia surpresa, daquelas que os americanos gostam de preparar assim: “Guess what!”. Ele tinha sido convidado – e já tinha aceitado – para uma designação temporária no Brasil para ser o Gerente do Departamento de Educação da Matriz da IBM, no Rio! Estava fazendo um curso de imersão de Português, o que viria a lhe tornar, no Brasil, uma grata exceção – um americano falando um ótimo Português, fluente, com pouco sotaque. Frustrou um pouco as secretárias aqui, pois estas gostavam de usar o seu Inglês, em geral muito bom.

Quando nos mudamos para o Rio, os Ouweneel já estavam instalados, num bom apartamento em Copacabana e a Joan até deu u’a mão para a Leilah na instalação do nosso apartamento. Convivemos no Rio por cerca de dois anos e continuamos muito amigos. Ambos aproveitaram o Rio e conheceram várias regiões do País fazendo turismo interno – eu me lembro de que fizeram o roteiro histórico de Minas e voltaram encantados. Voltaram aos Estados Unidos em 1971.

Ainda na década de 70, estive com o Bill algumas vezes em Nova York, uma vez no Rio, viagens a trabalho minhas e dele. Saímos da IBM aproximadamente na mesma época. Ao se aposentar, ele e Katherine, sua nova esposa (ele havia se divorciado da Joan havia vários anos) decidiram se mudar para Bellingham, uma pequena cidade encantadora no estado de Washington, perto de Seattle e de Vancouver (Canadá). Em 1994, visitamos o casal. Sua casa, muito confortável, fica de frente para o mar, numa encosta tomada por um bosque. Fazia um pouco de frio, o que tornava a casa muito aconchegante. O macarrão delicioso que Katherine preparou, acompanhado de um ótimo vinho, foi um almoço inesquecível. Ela, professora que se aposentara na mesma época em que o Bill deixou a IBM, passou a se dedicar mais à alta cozinha, de tal forma que passara a treinar “chefs”. Ela deu à Leilah sua receita de macarrão com salmão que passamos a usar no Brasil, com total aprovação dos amigos.

 
Encontrei novamente o Jorge quando estive no México em 1974, para outro curso internacional IBM em Cuernavaca, desta vez para gerentes de gerentes, e visitei sua família. Ele havia saído da IBM e se estabelecera com negócio próprio na área de Informática, fornecendo equipamento e serviços complementares para instalações de computadores, especialmente IBM. Nessa ocasião, estava noivo de Maria Eugenia, o que me surpreendeu porque ele me parecia um solteirão convicto.

Em 1978, quando era gerente de informática na Brasividro, empresa fabricante de louça vitrificada, formada por uma associação da Nadir Figueiredo (brasileira) e Cristales Mexicanos, Leilah foi a trabalho para Monterrey. Tirei férias na IBM e a acompanhei. Esticamos uns dias para fazer um pouco de turismo naquele país tão rico de história e tradições. Visitei o casal Jorge e família, pondo a vida em dia. Depois desta viagem, só voltaríamos ao México em 2002, quando Jurema foi trabalhar em Monterrey por dois anos.

Entre as visitas ao Bill e ao Jorge, mantive com os dois uma correspondência rarefeita, mesmo depois do advento do e-mail, baseada principalmente nos cartões de Natal, que costumo escrever, imprimir e enviar a amigos e parentes, com um resumo de minhas notícias do ano.

Em 2003, Leilah e eu visitamos o Jorge na Cidade do México, quando ele estava no hospital, na UTI, em estado muito grave, após uma queda acidental quando se exercitava na rua, mas não tenho certeza de ele ter me reconhecido. Nosso encontro com seus familiares, inclusive com Maria Eugenia, foi muito triste porque a expectativa era das piores. Ele faleceu naquele ano.

Restou a lembrança de nosso encontro em 2002, o projeto “Los Tres  Caballeros”, que aconteceu assim:

Costumamos visitar Cássio, meu segundo filho, e família na Califórnia com certa frequência. Ao planejar nossa viagem de 2002, entrei em contato com o Bill e comentei que ele, Jorge e eu nunca tínhamos estado juntos, os três ao mesmo tempo. E eu os conhecia havia trinta e cinco anos! Então, fiz uma brincadeira no e-mail lembrando um filme de Disney, do tempo da segunda guerra, em que um americano, um brasileiro e um mexicano se encontraram e ficaram amigos - o Pato Donald, o Zé Carioca e o Panchito (Pancho Pistolas, segundo o Jorge). Ele conhecia o filme “Los Tres Caballeros” e, com esse nome, nasceu nosso projeto: marcamos encontro em Seattle, num fim de semana de maio. Leilah e eu voamos da Califórnia; Jorge, da Cidade do México; o Bill  preparou o programa, reservou o hotel, marcou os jantares e, dirigindo de Bellingham, nos esperou em Seattle.

A capa do estojo da fita de vídeo

O hotel, o “Vintage Park”, no centro da cidade, não poderia ser mais agradável e hospitaleiro. Ao nos registrarmos, bastou nos apresentarmos como um dos “Três Caballeros”, pois o Bill havia falado do encontro para o gerente e, com isso, conseguiu um desconto e um tratamento muito simpático. Cada apartamento tinha o nome de uma vinícola do estado, então o segundo maior produtor de vinho dos Estados Unidos (passara Nova York) e toda tarde, às cinco, havia uma degustação grátis para os hóspedes. O restaurante também era excelente.

Leilah era a única mulher, pois Katherine tinha compromissos e não pôde ir e, só fiquei sabendo lá, o Jorge e a Maria Eugenia estavam divorciados. Fizemos vários programas na cidade, alguns os quatro, outros sem a Leilah quando ela  saía com a Diane, que mora em Seattle. Esta, mãe da Julia (minha nora americana), é extremamente gentil e fez questão de fazer alguns passeios com a Leilah, entre outros, uma visita ao Museu de Arte de Seattle.

Nossos programas se concentraram no centro da cidade, incluindo a tradicional visita ao mercado de peixe, a visita ao Benaroya Hall, sala de concertos da Orquestra Sinfônica de Seattle, construída com as mais avançadas técnicas de som, e algumas lojas de artigos eletrônicos. Os dois, Bill e Jorge, aproveitaram muito, entusiasmados, parecia que voltavam a muitos anos atrás quando, mais jovens, se tornaram amigos. Leilah e eu nos divertíamos com o jeito deles.

O jantar de despedida foi no hotel “Four Seasons”, o preferido do Jorge. Jantar de alto nível que fechou o programa de forma brilhante. No final do jantar, o Bill nos presenteou o vídeo do filme.

A data e as assinaturas dos tres caballeros
Quando o Jorge faleceu, o Bill me mandou um e-mail agradecendo, emocionado, a ideia do programa. “Los Tres Caballeros” foi um evento inesquecível.


Cada vez que o Bruno termina de ver o filme, paro o vídeo, ejeto a fita e abro o estojo para guardá-la. Antes de fechá-lo, releio emocionado, na sua face interna, as assinaturas: “Jorge”, “Bill” e “Washington”, e a data: “16/05/02”.

 


Rio de Janeiro, setembro de 2007






Washington Luiz Bastos Conceição