Um dos filmes de que mais gosto é o “A volta ao
mundo em 80 dias”. Alegre, agradável, com paisagens maravilhosas, em que
participaram ótimos atores, levou a história de Jules Verne à tela de uma forma
altamente competente. Dentre tudo que aprecio no filme, sempre me encanta o
desempenho do ator Mario Moreno, o Cantinflas.
Capas do DVD do filme |
Eu era adolescente quando tomei conhecimento da
existência de Cantinflas, ao ler um artigo da revista “The Readers Digest”,
àquela época bastante popular. Intitulado “Cantinflas, o Carlitos do México”,
fazia um breve resumo biográfico do ator e destacava as semelhanças de Cantinflas
com o personagem de Charles Chaplin.
Não me lembro de quanto tempo decorreu até eu
assistir a “O policial desconhecido”, um dos filmes mencionados no artigo de
“Seleções”.
Embora eu tivesse assistido a poucos filmes de
Carlitos, pude constatar a semelhança dos personagens. Com uma diferença
importante, porém: como os filmes de Cantinflas já eram da época do cinema
falado, este acrescentava, às características semelhantes de tipo de vida, de
indumentária, de atitudes de esperteza e de solidariedade ao próximo, um
diálogo complicado para envolver e desorientar as pessoas de posição social
superior. Enfim, era um brilhante embrulhão – em alguns papéis, analfabeto –
que, na ocasião, me pareceu semelhante ao malandro brasileiro.
Fiquei freguês dos filmes do Cantinflas, pois, além
do interesse específico em cada um, eu estava sempre aprendendo Espanhol.
De uma forma geral, seu personagem era um jovem
pobre e ignorante que morava em uma casa de cômodos; em alguns casos tinha um
emprego modesto, em outros estava simplesmente desempregado.
Sua indumentária
era: camiseta longa de manga comprida, lenço no pescoço, uma espécie de echarpe
que ele chamava de “mi gabardina”, calças amarradas com um cordão, caídas
abaixo da cintura e um sapato comprido, de sola fina; usava também um pequeno
chapéu de abas viradas para cima e ostentava um bigode diferente, nos cantos da
boca. Seus amigos e vizinhos eram pobres como ele. Apesar de sabido e malandro,
era muito generoso. Com frequência, tomava a iniciativa de ajudar alguém e
enfrentava situações particularmente difíceis para uma pessoa mal vestida e
ignorante. Contudo, ele se superava, mediante discursos incríveis.
Tenho na memória alguns diálogos dos filmes dele,
principalmente de suas tiradas junto a autoridades a quem ia pedir providências.
Por exemplo, em uma delas, Cantinflas vai ao Ministério da Educação, mal
vestido, como de hábito. Consegue penetrar no edifício público com uma de suas
conversas complicadas e se dirige ao gabinete do ministro. Quando a pessoa que
o recebe (talvez o chefe de gabinete) o convida para sentar, ele agradece e diz:
“¡Hay que haber educación en el Ministerio
de La Educación!”.
Em outro filme, Cantinflas está dando uma aula de
Espanhol para uns garotos. Em um certo ponto, ocorre o seguinte diálogo:
“Vamos a ver niños, ¿ustedes saben lo que es gramática? Se
me hace que no saben.”... “Pero no importa, pues para eso estoy yo aquí, para
decírselo. Gramática es el arte o la ciencia – pues en esto no nos hemos puesto
de acuerdo – que nos enseña a leer y a escribir correctamente el “indioma”
castellano.”
Um
dos alunos corrige:
“Maestro, no se dice “indioma”, se dice idioma, de raíz
latina”.
Ele
responde:
“Si, pero yo no hablo de esa raíz, yo hablo de la raíz
india, por eso digo indi-oma”.
Outro dia assisti pela internet a parte do “O bolero
de Raquel”, seu primeiro filme colorido, cujo título provém de uma dança de
Cantinflas com uma bailarina ao som do “Bolero”, de Ravel. É também um jogo de palavras,
pois “bolero” significava engraxate e Raquel é a principal personagem feminina.
Uma cena do início do filme é de Cantinflas
engraxando os sapatos de um turista americano diante do Castelo de Chapultepec,
na cidade do México.
O
turista pergunta:
“¿Usted sabe en qué año “ser” construido este bonito
“castilo”?”
O “bolero”, que ignora a data, enrola:
“No se dice “castilo”, se dice castillo. Fue construido,
ahora verá usted, en el año... porque cuando la batalla del chapulin que
agarramos en el cerro de... no, fue después del plan del agua sucia. Fue en el
año... no, fue antes.”
“¿Antes de que?”
“Del año ese que le iba a decir, porque ya ve usted
que en cuestión de fechas hay muchas controversias”...
E seguiu com o mesmo discurso complicado, enquanto
engraxava os sapatos e pintava com pontos pretos as meias brancas do cliente,
cujas calças o impediam de ver a arte do engraxate.
No final do serviço, o “bolero” cobrou mais caro por
falta de troco para um dólar. Como o cliente protestou, ele, cinicamente,
argumentou que o preço resultou barato, considerando a aula de história que
tinha dado e, mais, a decoração das meias.
Mario Moreno iniciou sua carreira artística no circo, onde
começou dançando; passou depois a uma companhia de teatro em que fazia pequenos
papéis e dançava no final da função. Esta companhia percorreu o México todo.
Ele voltou à cidade do México e seguiu trabalhando em vários circos.
Sua experiência de vida de menino pobre, mais o
trabalho circense e suas habilidades de dançar e de tourear serviram como base
valiosíssima para sua atuação nos mais de 40 filmes em que atuou. Seu personagem Cantinflas, que praticamente
se incorporou à sua própria identidade, tornou-se marcante por sua roupa, seus
gestos e, especialmente por seus diálogos cheios de jogo de palavras, de
malícia, intencionalmente confusos. A tal ponto característicos, que deram
origem, na língua Espanhola, ao verbo “cantinflear”.
Assisti, nestes dias, pela internet, a trechos de
alguns de seus filmes e ainda achei graça, apesar dos tempos serem outros. As
histórias de seus filmes eram um tanto piegas, mas estão relacionadas com o
próprio sentimento do ator que, além de sua atividade profissional específica,
lutou patrioticamente pelo cinema do México e, tendo ganhado muito dinheiro,
fez contribuições sociais de vulto. Foi um filantropo.
Fora do contexto dos filmes mexicanos, Mario Moreno mostrou
toda sua maestria na atuação em “Volta ao mundo em 80 dias”. Conseguiu
transformar o Passepartout em Cantinflas, com uma graça e simpatia totais. Para
mim, embora tenha apreciado suas “cantinfladas” em vários de seus filmes, foi o seu
maior desempenho.
Se Jules Verne fosse reeditar o livro, mudaria o
nome do criado de Mr. Phileas Fogg.
Washington
Luiz Bastos Conceição
Nota: Para
reproduzir melhor os diálogos dos filmes, recorri ao livro “Cantinflas” de
Adolfo Perez Agustí, e-book disponível na loja Kindle da Amazon.com.br . A foto
acima foi copiada da capa do mesmo livro.